“Não vemos as coisas como elas são, as vemos como nós somos” avisa logo de início o documentário que, ao longo das últimas semanas, circulou pelas redes sociais de Florianópolis. Além de um choque de realidade, o filme é um ‘tapa na cara’ de quem se deixa levar pela ideia de que a capital catarinense é um paraíso de braços abertos para pessoas de diferentes nacionalidades, cores e culturas.
“Florianópolis é uma só, mas as percepções que podem existir sobre ela são muitas, boas e ruins”, lembra Renata Bassani, uma das autoras de “UAU – Percepções de um angolano e um belga em Florianópolis”. O mini doc acompanha as experiências de dois intercambistas, um belga e um angolado, que vivem e estudam na capital catarinense e expõe uma contradição latente, mas muito presente no cotidiano da cidade.
O jovem Geoff é o retrato do europeu bem recebido, que se integra com facilidade e curte o melhor que a ilha tem a oferecer em termos sociais e culturais. Já o angolano Abel, nos oferece um relato bem distinto de quem encontra dificuldades e enfrenta preconceito, por ser africano e negro, e que não vê a hora de voltar para seu país.
A força do filme vem justamente desse contraste de visões e realidades e do poder desse paradoxo enquanto retrato da vida em Florianópolis. Ao assistir ao filme, é inevitável sentir o impacto de contradições tão cotidianas sendo trazidas à tona e não despertar para uma reflexão profunda sobre o tipo de sociedade estamos construindo.
Conversamos com Renata Bassani, estudante do oitavo período do curso de jornalismo da UFSC, e uma das autoras do trabalho. Renata é uma das criadoras do Correspondente Universitário, projeto audiovisual vencedor da Expocom Nacional 2015, do qual o ‘UAU’ faz parte.
O Barato: Foram vocês que criaram o “Correspondente Universitário”? De onde veio essa ideia?
Renata Bassani: Sim. A ideia de criar o Correspondente Universitário surgiu na época em que nós dois (Renata e Felipe Figueira, também autor do ‘UAU’) fizemos intercâmbio acadêmico na França, em 2014. Como somos estudantes de jornalismo e trabalhamos com produção audiovisual, decidimos aproveitar o embalo da nossa experiência fora do país para produzir várias reportagens sobre intercâmbio e viagens.
Nosso objetivo era produzir vídeos que mostrassem o choque cultural, as relações interpessoais e as dificuldades que estudantes encontram na Europa e América Latina ao sair de casa para o intercâmbio acadêmico. Com essa ideia na cabeça e com a ajuda de outros três colegas de jornalismo que estavam em intercâmbio na Espanha e na Alemanha, produzimos 45 vídeos em oito países diferentes da Europa.
O Barato: Como chegaram ao argumento do “UAU – Percepções de um angolano e um belga em Florianópolis”? Que vivências e realidades da cidade levaram vocês a abordar esse tema?
Renata Bassani: Depois de viver uma experiência fora do país, voltamos ao Brasil e percebemos que seria legal explorar um pouco mais do choque cultural de fazer um intercâmbio, mas desta vez no Brasil. Queríamos mostrar a visão que os estrangeiros tem do nosso país.
Como estávamos cursando uma disciplina no curso de Jornalismo em que precisávamos produzir um documentário, decidimos escolher esse tema para nossa abordagem. Assim, começamos a pesquisar diversos vídeos e documentários que já existem sobre intercâmbio em Florianópolis, e percebemos que a maioria das produções mostra apenas as mil maravilhas de morar na Ilha. Quase não existem produções que mostram as dificuldades e problemas que os intercambistas enfrentam por aqui.
Na UFSC, conhecemos vários intercambistas europeus que adoram Florianópolis (a maioria) e consideram a Ilha um dos lugares mais bonitos do Brasil. Mas também vemos muitos africanos na Universidade, que não tem a mesma percepção. Conversando com vários amigos que conhecem africanos no Brasil, tivemos relatos de que eles são mais reservados, passam por mais dificuldades e não interagem muito com os brasileiros. Inclusive, nossa colega Gabriela Damaceno, também produtora do documentário, estudava com um intercambista angolano e nos contou que ele tinha uma visão bem diferente sobre Florianópolis.
Foi isso que nos motivou a fazer o documentário: mostrar que nem todo intercambista se sente no paraíso quando chega à Florianópolis. E que existe sim um forte contraste entre intercambistas europeus e intercambistas africanos aqui em Santa Catarina.
O Barato: Como chegaram a esse formato? À ideia de contrastar os dois intercambistas para metaforizar um paradoxo da própria cidade?
Renata Bassani: Chegamos a esse formato quando conhecemos o Abel e o Geoff, os dois intercambistas (Angolano e Belga) que aparecem no nosso documentário. Quando conversamos com o Abel pela primeira vez, tomamos um choque. Não imaginávamos essa realidade e nem tínhamos muito contato com ela. Conhecemos a realidade de um intercambista ignorado em Florianópolis, cheio de experiências ruins, que não via a hora de ir embora. Aquilo foi “um tapa na cara” pra gente! Foi quando pensamos: “UAU! Esse é o personagem para o nosso trabalho!”.
Abel Pedro, 32 anos, angolano e estudante de Antropologia da UFSC
Ao mesmo tempo, quando conversamos com o Geoff (Belga), percebemos que ele tinha uma visão bem parecida com a que a maioria dos intercambistas europeus tem no Brasil. Eles são bem recebidos, adoram as praias, se dão bem com os brasileiros e quase sempre tentam prolongar sua estadia por aqui. Percebemos então que o Geoff seria uma boa representação do intercambista europeu no nosso documentário.
Com os dois personagens, tínhamos conteúdo suficiente para mostrar que Florianópolis é uma só, mas as percepções que podem existir sobre ela são muitas, boas e ruins.
Geoffroy Damant, 22 anos, belga e estudante de Agronomia da UFSC
O Barato: Você acredita numa mudança do paradigma exposto no filme?
Renata Bassani: Acredito que os paradigmas, padrões e modelos de comportamento em Florianópolis e no Sul do Brasil tem origens muito culturais e ligadas à educação. As pessoas ainda são bem conservadoras e, mesmo em Florianópolis, que é uma cidade muito aberta ao mundo, ainda existe sim preconceito e racismo.
Vivemos em um estado que, segundo o censo 2010 do IBGE, tem 84% de brancos declarados, e é o estado com a maior proporção de brancos do país, seguido pelo Rio Grande de Sul e Paraná. Em relação a presença de pessoas negras, SC está em última posição, com a proporção de 2,9% de negros. Além disso, 40% da população catarinense tem origem alemã. É sem dúvida um estado mais europeu, e que ainda tem pouco contato com a cultura negra. O catarinense tem mais interesse em socializar com um intercambista europeu do que com um africano. Essa é a nossa realidade.
Além do pouco contato, acredito que ainda existe muito desconhecimento dos catarinenses em relação aos países da África, como diz o Abel no documentário. Afinal, acreditar que todo negro estrangeiro é haitiano, olhar pra ele com olhar inferior por achar que é cotista na universidade, ou não saber que na Angola se fala português, é puro desconhecimento.
O Barato: Conhece algum projeto que trabalha para isso em Florianópolis? Que tipo de política pública vocês acham que poderia ajudar a reverter esse quadro?
Renata Bassani: Não conheço projetos específicos que trabalham para melhorar essa situação em Florianópolis, mas sei que a UFSC tem alguns projetos e núcleos de estudos interessantes relacionados a difusão da cultura africana e da cultura negra brasileira. O problema é que eles ainda estão muito fechados na comunidade acadêmica. Poucas pessoas tem conhecimento que eles existem.
Acredito que o tema poderia ser mais abordado nas escolas catarinenses, no ensino básico e fundamental, para que essas situações não continuem se repetindo futuramente, e para que tenhamos um estado mais igualitário no tratamento das pessoas, não só dos estrangeiros mas também nas recepção dos próprios brasileiros de outras regiões que vem pra cá.
O Barato: A realidade exposta no filme costuma ser bem retratada pelos veículos de comunicação e pela mídia em geral?
Renata Bassani: Acho que não, a maioria das produções mostra apenas os benefícios de morar na Ilha.